12 novembro 2009

Nasce mamífero sem pai e com duas mães

Tecnologia tão polêmica e revolucionária quanto clonagem elimina sexo masculino e muda regras da reproduçãoUm dogma da ciência foi quebrado ontem com o anúncio do nascimento do primeiro mamífero que tem duas mães e nenhum pai. Trata-se de uma fêmea de camundongo chamada Kaguya, produzida por partenogênese. Até agora o desenvolvimento de mamíferos por partenogênese era considerado impossível. Porém, segundo um estudo publicado na revista britânica 'Nature', Kaguya foi gerada sem a participação de qualquer espermatozóide ou célula masculina. Somente células sexuais femininas (óvulos) foram utilizadas. O nascimento de um mamífero vivo por partenogênese foi considerado o fato mais revolucionário na biologia reprodutiva desde a clonagem da ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado do mundo, anunciada em 1997. Dolly quebrou o dogma segundo o qual uma célula adulta jamais poderia ser reprogramada para gerar um novo indivíduo. Kaguya desafiou outro dogma: o de que dois mamíferos do mesmo sexo nunca poderiam combinar seus genomas para originar filhos. Nascimento por imaculada concepção, embriões humanos clonados foram produzidos por partenogênese antes, pela empresa americana Advanced Cell Technology, em 2001, e depois em experiências em outras partes do mundo.Todavia, esses embriões eram defeituosos e morreram no estágio de poucas células. Jamais poderiam se desenvolver e formar uma pessoa.Realizada por cientistas japoneses, a experiência tem desdobramentos biológicos e éticos. Ela aumentou consideravelmente o conhecimento sobre os mecanismos genéticos da concepção. Mas também evidenciou que o ser humano chegou a um nível inédito na capacidade de mudar a geração de seres vivos. Como a clonagem, a partenogênese permite a reprodução sem sexo e rompe as leis da evolução.A partenogênese possibilita o nascimento por 'imaculada concepção'. O estudo abriu a polêmica possibilidade de que casais de lésbicas possam ter filhas geneticamente aparentadas de ambas - sempre filhas, já que sem o cromossomo sexual masculino Y é impossível gerar meninos.A produção de um mamífero por partenogênese mostrou que o sexo masculino não é mais obrigatoriamente necessário para a geração de um mamífero. O estudo terá impacto sobre a embriologia, a reprodução assistida e a clonagem. Por enquanto, destacaram cientistas, a possibilidade de gerar pessoas por partenogênese é extremamente remota. A biologia reprodutiva de camundongos e seres humanos é muito diferente e o método pode nunca funcionar em pessoas. Além dos evidentes problemas éticos, tal experiência iria requerer um número elevado de óvulos. Kaguya foi criada por cientistas da Universidade de Agricultura de Tóquio a partir da combinação do material genético de dois óvulos. Acreditava-se que a partenogênese pode ocorrer em vários tipos de animais, mas nunca em mamíferos devido a um fenômeno chamado marcação genética (imprinting, em inglês). Na formação de espermatozóides e óvulos certos genes fundamentais ao desenvolvimento do embrião são desligados por uma série de marcações químicas. Há marcações que só ocorrem em óvulos e outras restritas a espermatozóides. Apenas quando um óvulo e um espermatozóide se combinam é que todos os genes essenciais se tornam disponíveis e permitem o desenvolvimento do embrião. Para produzir Kaguya, Tomohiro Kono e sua equipe desenvolveram uma espécie de truque biológico. Eles burlaram as regras do imprinting manipulando o núcleo do óvulo de uma das fêmeas para masculinizá-lo. Isso só foi possível com a criação de camundongas transgênicas cujos óvulos têm ativado o gene IGF-2, normalmente ativo somente nos espermatozóides e essencial para o desenvolvimento do embrião. O núcleo do óvulo de uma camundonga transgênica foi então transferido para outro óvulo, normal. O óvulo com dois núcleos foi cultivado em laboratório e começou a crescer e se dividir, como se fosse um embrião normal. A técnica ainda é altamente ineficiente. De 457 óvulos reconstruídos apenas Kaguya e uma irmã nasceram vivas. E somente Kaguya chegou à idade adulta.
O Globo - Abril 2004

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